STF e pejotização: o que está em jogo após a suspensão dos processos sobre vínculo empregatício

A pejotização voltou ao centro do debate jurídico e econômico brasileiro. Em outubro de 2025, o Supremo Tribunal Federal realizou uma audiência pública que reuniu 48 especialistas, além de representantes de trabalhadores e de empresas, para discutir o Tema 1.389, que trata dos limites e da legalidade das contratações por pessoa jurídica. O julgamento definirá em qual esfera esses contratos devem ser analisados e até onde vai a autonomia privada nas relações de trabalho.

Em pauta estão três pontos decisivos: a competência da Justiça do Trabalho para examinar alegações de fraude em contratos civis, a licitude da contratação de autônomos e pessoas jurídicas à luz da liberdade de organização produtiva e a distribuição do ônus da prova quando há contestação sobre a validade desses vínculos.

Entender como os contratos PJ se desenvolveram desde a Reforma Trabalhista é essencial para avaliar riscos, aprimorar políticas de compliance e garantir equilíbrio entre flexibilidade contratual e segurança jurídica. 

A Reforma Trabalhista e a flexibilização das formas de contratação

A Lei nº 13.467/2017 trouxe mudanças profundas à Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), modernizando diversos pontos e reconhecendo novas metodologias de mercado. Um dos efeitos mais relevantes foi a ampliação das formas de contratação, com a inclusão de modalidades como o trabalho intermitente, o teletrabalho e a terceirização irrestrita.

Essas transformações criaram espaço para a expansão da pejotização, a prática de contratar pessoas jurídicas individuais (PJs) em vez de empregados com carteira assinada. Na prática, essa forma de relação pode ser legítima quando há autonomia real e ausência de subordinação. Contudo, quando a contratação serve para mascarar uma relação típica de emprego, a empresa incorre em fraude trabalhista.

Essa fronteira sutil exige atenção. A Reforma não autorizou o uso indiscriminado da pejotização, mas sim reconheceu a necessidade de adaptar a legislação às novas formas de trabalho, desde que observados os princípios da boa-fé, da voluntariedade e da ausência de dependência hierárquica.

O que é a pejotização?

A pejotização é a prática em que empresas contratam profissionais como pessoas jurídicas, e não como empregados formais, transferindo a eles encargos e responsabilidades típicas da relação de trabalho. Essa modalidade surgiu como alternativa à rigidez da CLT e ganhou espaço em setores que valorizam a autonomia técnica e a flexibilidade.

O modelo pode ser legítimo quando há autonomia real e ausência de subordinação. No entanto, quando utilizado para disfarçar vínculos empregatícios, caracteriza – se como fraude trabalhista e gera riscos jurídicos para a empresa.

O que está sendo discutido no STF?

O Supremo Tribunal Federal determinou a suspensão nacional de todos os processos que discutem o reconhecimento de vínculo empregatício em contratos de pessoa jurídica. A medida, tomada no âmbito do Tema 1.389, permanece válida até o julgamento definitivo sobre a pejotização.

O caso definirá qual esfera deve julgar esse tipo de contrato: a Justiça Comum, que analisa a forma contratual, ou a Justiça do Trabalho, que avalia a realidade da relação e eventuais fraudes.

Em discussão estão três pontos principais:

  1. A competência da Justiça do Trabalho para julgar alegações de fraude em contratos civis.
  2. A licitude da contratação de autônomos e pessoas jurídicas com base na liberdade de organização produtiva.
  3. A distribuição do ônus da prova nas ações que questionam a validade desses vínculos.

A decisão do STF deve impactar diretamente a interpretação da Reforma Trabalhista e a forma como as empresas estruturam seus contratos e políticas de compliance.

Audiência pública do STF: o que foi debatido?

Em outubro de 2025, o STF realizou uma audiência pública que reuniu 48 especialistas, representantes de empresas e trabalhadores para discutir os impactos da pejotização.

O debate apresentou visões divergentes: entidades empresariais defenderam a liberdade contratual e a eficiência econômica, enquanto magistrados e sindicatos alertaram para a precarização do trabalho e a redução das contribuições previdenciárias.

As contribuições servirão de base para o voto dos ministros no Tema 1.389, que deve definir o limite entre autonomia legítima e fraude nas contratações por pessoa jurídica.

Como a Justiça do Trabalho tem interpretado os novos modelos contratuais

Com o aumento dos contratos por pessoa jurídica, a interpretação dos tribunais passou a ter papel decisivo na definição dos limites da pejotização. O posicionamento dos tribunais evoluiu desde a Reforma e a Justiça do Trabalho tem adotado uma postura pragmática: não basta haver contrato entre empresas, é necessário que os fatos comprovem a autonomia.

O Tribunal Superior do Trabalho (TST) e os Tribunais Regionais vêm reconhecendo vínculos de emprego sempre que verificam subordinação estrutural, mesmo que o trabalhador tenha CNPJ ativo. Isso ocorre, por exemplo, em empresas que mantêm profissionais PJ em horários fixos, submetidos a metas e supervisões diretas.

Em contrapartida, quando há autonomia real e ausência de ingerência da empresa sobre a execução do serviço, a Justiça tem validado a pejotização, especialmente em atividades intelectuais, tecnológicas e de consultoria. A tendência é valorizar a prova concreta da independência do prestador, o que reforça a importância da gestão documental e do compliance trabalhista.

Diferença entre pejotização lícita e fraude trabalhista

Nem toda contratação via CNPJ é irregular. A pejotização lícita ocorre quando o prestador de serviços atua de maneira autônoma, define seus horários, assume os riscos de sua atividade e pode prestar serviços a outros clientes. Já a pejotização fraudulenta surge quando a empresa oculta uma relação de emprego, mantendo subordinação, habitualidade e pessoalidade sob uma fachada empresarial.

A distinção parece simples, mas sua prova é complexa. Em ações judiciais, o poder diretivo, quando a empresa dita rotinas, horários ou metas de maneira rígida, costuma ser o principal indício de vínculo empregatício. Por isso, é importante que os contratos de prestação de serviços estabeleçam cláusulas claras sobre autonomia técnica e ausência de subordinação.

Em outras palavras, a pejotização não é proibida, mas deve ser juridicamente estruturada. Sem uma documentação sólida e coerente com a prática diária, a empresa corre o risco de ver reconhecido um vínculo empregatício retroativo, com pagamento de verbas trabalhistas, encargos e multas.

Regra prática: ter CNPJ não impede o reconhecimento de vínculo. Os fatos prevalecem sobre a forma (princípio da primazia da realidade). Se houver subordinação, habitualidade, onerosidade e pessoalidade, há forte risco de reclassificação.

Critérios práticos para identificar vínculo empregatício disfarçado

Gestores e advogados internos devem ser capazes de identificar riscos antes que se transformem em litígios, observando quatro elementos que, combinados, caracterizam o vínculo de emprego segundo o artigo 3º da CLT:

  1. Pessoalidade: o serviço deve ser prestado pessoalmente, sem substituições livres.
  2. Onerosidade: a contraprestação financeira contínua.
  3. Habitualidade: o trabalho ocorre com frequência, e não eventualmente.
  4. Subordinação: o empregador controla a forma e o modo de execução do serviço.

Se esses requisitos estiverem presentes, ainda que o contrato formal seja de PJ, a relação é, na essência, de emprego. Essa análise é sempre feita com base nos fatos, não só nos documentos, princípio conhecido como primazia da realidade, consolidado pela jurisprudência trabalhista.

Impactos da pejotização nas empresas: riscos e vantagens competitivas

A pejotização pode, sim, oferecer vantagens competitivas: redução de encargos, simplificação administrativa e flexibilidade operacional. No entanto, o risco jurídico é proporcional à falta de controle sobre sua aplicação.

Um exemplo concreto dessa tensão é o caso do iFood, que nos últimos anos enfrentou diversas ações trabalhistas questionando o vínculo empregatício de entregadores e prestadores de serviços contratados como pessoas jurídicas.

Em 2023, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) analisou diferentes processos envolvendo a plataforma, reconhecendo o vínculo em algumas situações e afastando-o em outras, conforme o grau de subordinação e dependência econômica comprovado nos autos. O episódio se tornou símbolo dos desafios que a pejotização impõe às empresas que operam sob modelos flexíveis, especialmente na atual circunstância da economia digital.

Por outro lado, há companhias que transformaram a pejotização em ferramenta legítima de gestão. Um caso interessante é o da XP Inc., que estruturou o modelo de contratação de assessores de investimento por meio de pessoas jurídicas, com respaldo jurídico e regulação da CVM. O formato passou por auditorias de compliance e foi validado em fiscalizações do Ministério do Trabalho, servindo como exemplo de pejotização legítima, transparente e juridicamente segura.

Esses exemplos demonstram que a pejotização não é, por si só, um problema. O risco está na forma como é implementada. Quando estruturada com assessoria jurídica especializada, documentação robusta e fiscalização preventiva, pode se tornar uma ferramenta estratégica, garantindo previsibilidade de custos e relações contratuais transparentes.

Entretanto, o mesmo modelo que oferece eficiência e autonomia pode rapidamente se transformar em um passivo se for mal conduzido. É nesse ponto que a linha entre a gestão moderna de pessoas e a violação de direitos trabalhistas se torna mais tênue e onde a responsabilidade civil, trabalhista e previdenciária do empregador entra em cena.

Responsabilidade civil, trabalhista e previdenciária do empregador

A responsabilidade do empregador não se limita à relação direta de emprego. Mesmo em contratações via pessoa jurídica, a empresa pode responder solidária ou subsidiariamente caso se comprove fraude no controle das relações.

A Súmula 331 do TST reforça essa ideia ao prever que o tomador de serviços responde subsidiariamente pelas obrigações trabalhistas da contratada, caso não fiscalize adequadamente o cumprimento das normas. Assim, a pejotização mal conduzida não isenta a empresa de responsabilidades, mas apenas altera o formato de risco.

Além disso, autuações do Ministério do Trabalho e Emprego e ações regressivas do INSS podem recair sobre empresas que utilizam PJs de maneira irregular. Por isso, o compliance trabalhista precisa ser acompanhado de perto por áreas jurídica, contábil e de segurança ocupacional.

Base legal: a Súmula 331 do TST admite responsabilidade subsidiária do tomador por falhas de fiscalização. O art. 9º da CLT invalida atos destinados a fraudar a legislação trabalhista.

Compliance trabalhista e governança nas relações com prestadores de serviço

A prevenção é a chave. O compliance trabalhista deve ser visto como investimento, e não como custo. Isso inclui revisar contratos, criar fluxos de auditoria, treinar gestores e manter registros que comprovem a autonomia dos prestadores.

Empresas que adotam programas de integridade conseguem identificar fragilidades antes que se tornem litígios. A elaboração de políticas internas para de contratação de prestadores PJ, bem como manuais de conduta e prestação de serviços, são práticas cada vez mais exigidas pelos tribunais.

Os riscos da pejotização não estão somente nas ações trabalhistas, mas também no efeito dominó que uma condenação pode gerar sobre a reputação e a governança da empresa. Cada processo revela algo mais profundo: a ausência de controles internos, de registros adequados e de uma cultura de conformidade.

É justamente por isso que, no ambiente corporativo atual, a prevenção se tornou um o novo diferencial competitivo. As companhias que compreendem que o custo de um passivo trabalhista vai muito além do valor da condenação, atingindo imagem, credibilidade e até o acesso a crédito, são as mesmas que estão investindo em compliance e governança nas relações com prestadores de serviço.

Estratégias jurídicas para empresas se protegerem de passivos trabalhistas

Evitar passivos trabalhistas não depende só de contratos bem redigidos. É necessário adotar práticas de compliance e meios de prova preventiva que comprovem a autonomia dos prestadores e protejam a empresa contra riscos de reclassificação de vínculo. A melhor defesa é a prova preventiva. Por isso, as empresas devem:

  • Formalizar contratos com cláusulas específicas de autonomia e responsabilidade técnica.
  • Manter comprovações documentais de que o prestador possui outros clientes e liberdade de execução.
  • Realizar exames de auditoria periódica para revisar práticas de gestão e conformidade.
  • Consultar advogados especializados em Direito do Trabalho Empresarial antes de implementar modelos de contratação híbrida.

Essas medidas reduzem significativamente o risco de reclassificação judicial do vínculo. Além disso, reforçam a cultura organizacional de conformidade e responsabilidade social.

A pejotização no futuro das relações de trabalho é tendência ou retrocesso?

A pejotização não é uma moda passageira, mas uma consequência natural da economia digital e da procura por eficiência. Profissionais de tecnologia, saúde, comunicação e consultoria são cada vez mais contratados como PJs, refletindo uma lógica global de especialização e autonomia.

Contudo, essa tendência só será sustentável se acompanhada de ética empresarial e segurança jurídica. Países europeus e latino-americanos vêm enfrentando o mesmo dilema: como equilibrar liberdade contratual e proteção social. O Brasil, com sua complexa legislação, precisa caminhar na mesma direção, promovendo flexibilidade sem precarizar direitos.

Conclusão

A pejotização é um dos reflexos da modernização das relações de trabalho, mas sua adoção exige responsabilidade e transparência. A Reforma Trabalhista ampliou as possibilidades contratuais, porém não afastou o dever de observar os princípios da boa-fé, da autonomia real e da proteção jurídica mínima ao trabalhador.

Empresas que enxergam a pejotização como instrumento de gestão, e não como forma de reduzir encargos, tendem a construir relações mais estáveis e sustentáveis. A implementação de práticas de compliance, auditorias periódicas e assessoria jurídica especializada é essencial para evitar passivos e garantir previsibilidade.

O julgamento do Supremo Tribunal Federal sobre o Tema 1.389 trará diretrizes que podem redefinir a fronteira entre liberdade negocial e fraude trabalhista. Antecipar-se a esse cenário é o melhor caminho para preservar a segurança jurídica, a reputação institucional e a confiança nas relações de trabalho — valores que sustentam o futuro das empresas e do próprio mercado de trabalho brasileiro.

Se você ficar com dúvidas, é só entrar em contato conosco!