Imagine a seguinte cena: um colaborador sofre um acidente de carro a caminho do trabalho. Ele ainda não estava na empresa, mas o trajeto fazia parte da sua rotina profissional.
Mas será que o acidente de trajeto ainda é considerado acidente de trabalho? A dúvida é comum entre trabalhadores e empresas, principalmente diante das mudanças trazidas pela reforma trabalhista e pelas medidas provisórias que alteraram, ainda que de forma temporária, a legislação previdenciária.
Esse tema é mais relevante do que parece. O enquadramento jurídico de um acidente no caminho entre casa e trabalho pode definir se o colaborador terá estabilidade no emprego, se a empresa deverá emitir a CAT e até quais benefícios previdenciários serão concedidos.
Nos últimos anos, decisões do TST e alterações legislativas criaram incertezas sobre o assunto. Por isso, compreender como a lei e a jurisprudência tratam o acidente de trajeto é fundamental para gestores de RH, empregadores e trabalhadores.
O que é acidente de trajeto e como a lei define
A legislação brasileira dá uma resposta clara. O acidente de trajeto, também chamado de acidente in itinere, acontece quando o trabalhador sofre um infortúnio no caminho entre casa e trabalho.
A Lei nº 8.213/91, em seu artigo 21, inciso IV, alínea “d”, equipara o acidente de trajeto ao acidente de trabalho. Isso significa que, em regra, o trabalhador acidentado no caminho de casa para a empresa, ou vice-versa, tem direito às mesmas proteções que teria se o acidente ocorresse dentro do ambiente laboral.
Entre esses direitos estão os benefícios previdenciários, a emissão da CAT e a estabilidade no emprego após o retorno. É esse enquadramento que mantém a proteção ao trabalhador mesmo fora do ambiente laboral.
A diferença entre acidente de trabalho típico, doença ocupacional e acidente de trajeto
Para entender melhor o impacto jurídico do acidente de trajeto, é preciso diferenciá-lo das outras categorias de acidente de trabalho previstas na legislação.
- Acidente típico: acontece dentro do ambiente de trabalho ou no exercício direto das funções.
- Doença ocupacional: surge em razão da atividade desempenhada, como LER/DORT em digitadores ou silicose em mineiros.
- Acidente de trajeto: ocorre no deslocamento entre casa e trabalho, independentemente do meio de transporte: carro, ônibus, bicicleta ou até mesmo a pé.
Embora diferentes, esses três tipos de acidente compartilham um ponto em comum: todos podem gerar afastamento pelo INSS, emissão de CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho), estabilidade de 12 meses após o retorno e, em alguns casos, responsabilidade civil do empregador.
É nesse último aspecto que surgem os maiores questionamentos, especialmente quando se trata de trajetos fora do controle da empresa.
O impacto da reforma trabalhista no acidente in itinere
A Lei nº 13.467/2017, conhecida como reforma trabalhista, não mexeu diretamente no artigo 21 da Lei 8.213/91, mas alterou o artigo 58, §2º da CLT. Antes da reforma, o tempo gasto no trajeto poderia, em algumas situações, ser considerado como parte da jornada, especialmente quando o local era de difícil acesso ou sem transporte público.
Com a nova redação, ficou expresso que o tempo de deslocamento, caminhando ou por qualquer meio de transporte, inclusive fornecido pelo empregador, não é mais considerado tempo à disposição. Isso eliminou o direito às chamadas “horas in itinere”.
Essa mudança abriu margem para interpretações equivocadas. Muitos passaram a defender que, se o trajeto não conta mais como tempo de trabalho, também não poderia gerar acidente de trabalho. A questão, contudo, não foi resolvida dessa forma.
A mudança com a MP 905 e seus efeitos temporários
Em novembro de 2019, o Governo Federal editou a Medida Provisória nº 905/19, criando o chamado contrato de trabalho “verde e amarelo”. Entre outras alterações, a MP revogou a alínea “d” do artigo 21 da Lei 8.213/91, retirando expressamente o acidente de trajeto da lista de equiparação ao acidente de trabalho.
Por alguns meses, não havia mais dúvidas: o acidente in itinere não gerava estabilidade nem garantia previdenciária. Porém, em abril de 2020, a MP perdeu validade por não ter sido convertida em lei, restabelecendo o texto original da Lei 8.213/91.
Essa ida e volta legislativa aumentou a insegurança jurídica. Empresas e trabalhadores ficaram diante de uma pergunta difícil: qual norma prevalece? A CLT reformada ou a lei previdenciária?
O conflito de normas: CLT x Lei 8.213/91
Esse impasse é o que os juristas chamam de antinomia, um conflito aparente de normas. De um lado, a CLT diz que o trajeto não é tempo de serviço. De outro, a Lei 8.213/91 equipara o acidente de trajeto ao acidente de trabalho.
Para resolver esses conflitos, o Direito utiliza três critérios:
- hierárquico: não se aplica, porque ambas são leis ordinárias.
- cronológico: a CLT reformada é mais recente, o que levaria à exclusão do acidente de trajeto como acidente de trabalho.
- especialidade: a Lei 8.213/91 trata especificamente de benefícios previdenciários, o que justificaria sua prevalência.
Na prática, os tribunais têm adotado o critério da especialidade, reconhecendo que o acidente de trajeto continua sendo acidente de trabalho para fins previdenciários. Mas as decisões também mostram nuances que precisam ser compreendidas por empresas e RH.
O entendimento atual da Justiça do Trabalho e do TST
Hoje, o que prevalece na jurisprudência é uma interpretação que pode ser chamada de “meio-termo”. O Tribunal Superior do Trabalho (TST) tem reconhecido que o acidente de trajeto ainda é considerado acidente de trabalho para efeitos previdenciários, como emissão da CAT, auxílio-doença acidentário e estabilidade de 12 meses.
Por outro lado, os tribunais afastam, em regra, a responsabilidade civil automática da empresa, já que o tempo de trajeto não é considerado à disposição do empregador. Em outras palavras: se o acidente decorreu de fatores externos e sem culpa do empregador, não cabe indenização por danos materiais ou morais.
Essa diferenciação é importante porque mostra como a Justiça visa o equilíbrio: garante a proteção previdenciária ao trabalhador, mas não transfere à empresa uma responsabilidade que extrapola seu controle.
Direitos garantidos ao trabalhador em caso de acidente de trajeto
Apesar das idas e vindas legislativas, os trabalhadores continuam amparados em vários aspectos quando sofrem um acidente de trajeto. Entre os principais direitos estão:
- Emissão da CAT pelo empregador até o primeiro dia útil seguinte ao acidente.
- Auxílio-doença acidentário, quando há afastamento superior a 15 dias.
- Recolhimento do FGTS durante o período de afastamento.
- Estabilidade de 12 meses após o retorno ao trabalho.
- Auxílio-acidente caso fiquem sequelas que reduzam a capacidade laboral.
- Aposentadoria por invalidez nos casos mais graves.
Esses direitos reforçam a importância de as empresas estarem atentas a sua obrigação de emitir a CAT e orientar o colaborador em relação ao INSS. Negligenciar esse dever pode gerar questionamentos judiciais e até pedidos de rescisão indireta.
Obrigações do empregador e emissão da CAT
Do ponto de vista empresarial, a obrigação mais imediata é a emissão da CAT (Comunicação de Acidente de Trabalho). O documento deve ser enviado ao INSS até o primeiro dia útil seguinte ao acidente. Em caso de óbito, a comunicação deve ser feita imediatamente.
Embora a empresa não seja responsabilizada automaticamente por indenizações, deixar de emitir a CAT pode gerar multas administrativas e ações trabalhistas. Além disso, passa uma mensagem negativa ao colaborador e pode comprometer a imagem institucional da companhia.
Outra responsabilidade importante é investir em prevenção. Isso inclui oferecer transporte seguro quando o deslocamento é fornecido pela empresa, promover campanhas de conscientização sobre segurança no trânsito e criar políticas internas para orientar gestores e colaboradores sobre como agir em caso de acidente de trajeto.
Para entender em detalhes o passo a passo e evitar falhas nesse processo, recomendamos a leitura do artigo “Guia completo: como abrir uma CAT sem erros (2025)”.
Ao cumprir essas obrigações, a empresa reduz riscos jurídicos e fortalece sua reputação como empregadora responsável.
Orientações práticas para empresas e gestores de RH
O acidente de trajeto continua gerando discussões, mas algumas lições práticas já podem ser tiradas:
- Mantenha políticas claras: inclua orientações sobre acidente de trajeto nos manuais internos e treinamentos.
- Padronize procedimentos: defina quem deve ser comunicado, como registrar o ocorrido e qual fluxo seguir para emissão da CAT.
- Acompanhe a legislação: mudanças como a MP 905 mostram que o tema pode voltar à pauta do legislador.
- Invista em prevenção: oferecer transporte seguro, quando aplicável, reduz a exposição a acidentes e fortalece a cultura de cuidado.
- Documente tudo: registros de comunicação, relatórios de acidentes e protocolos ajudam a empresa a se defender em caso de litígio.
Essas medidas não só evitam multas e processos, mas também demonstram que a empresa valoriza a saúde e a dignidade de seus colaboradores. Em tempos de maior valorização da governança corporativa e do compliance trabalhista, isso se torna um diferencial competitivo.
Conclusão
A pergunta que dá título a este artigo – “Acidente de trajeto ainda é considerado acidente de trabalho?” – tem uma resposta que exige nuance. Sim, ele continua equiparado para fins previdenciários, garantindo proteção ao trabalhador. Mas, para fins de responsabilização civil da empresa, a regra é diferente: só haverá condenação se ficar comprovada a culpa ou o dolo do empregador.
Para empresários e gestores de RH, não basta acompanhar o debate jurídico. É preciso estruturar procedimentos internos, emitir a CAT corretamente e investir em prevenção. Assim, a empresa cumpre suas obrigações legais, reduz riscos e fortalece sua imagem como organização responsável. Se você ficar com dúvidas, é só entrar em contato conosco!